16 de ago. de 2010

A tatuagem (?) de Cléo Pires

Cléo Pires usou (o verbo é perfeito!) uma tatuagem com henna para fazer as fotos do ensaio da Playboy. Era (outro verbo sugestivo) um texto de Fernando Pessoa - esse sim, alguém que eternizou obras, deixou poemas como terríveis tatuagens de tédio & espanto na história literária mundial - um texto de F. Pessoa chamado Tempo de Travessia e que passa a ideia que só o anti-comodismo, a procura, a ousadia enfim, são capazes de nos fazer romper as margens de nós mesmos, e adentrar o desconhecido.
A tatuagem de henna de Cléo Pires é um sintoma da fugacidade do banal, algo que dá a impressão de ser visceral - como as tatoos verdadeiras de fato são ao desafiar a passagem do tempo - mas no fundo é pífio e feito para não resistir, não desafiar.

Fizesse eu a opção por tatuar um poema, faria uma tatuagem verdadeira, com todas as perdas e ganhos que isso pudesse me ocasionar. Tatuaria, por exemplo, o grande poema de Roberto Piva (um dos mais viscerais poetas brasileiros, morto em 03/07/2010):



O Volume do Grito

Eu sonhei que era um Serafim e as putas de São Paulo avançavam na densidade exasperante
estátuas com conjuntivite olham-me fraternalmente
defuntos acesos tagarelam mansamente ao pé de um cartão de visitas
bacharéis praticam sexo com liquidificadores como os pederastas cuja santidade confunde os zombeteiros
terraços ornados com samambaias e suicídios onde também as confissões mágicas podem causar paixões de tal gênero
relógios podres turbinas invisíveis burocracia de cinza cérebros blindados alambiques cegos viadutos demoníacos
capitais fora do Tempo e do Espaço e uma Sociedade Anônima
regendo a ilusão da perfeita bondade
Os gramofones dançam no cais
O Espírito Puro vomita um aplauso antiaéreo
O Homem Aritmético conta em voz alta os minutos que nos faltam contemplando a bomba atômica como se fosse seu espelho
encontro com Lorca num hospital da Lapa
a Virgem assassinada num bordel
estaleiros com coqueluches espetando banderillas no meu Tabu
eu bebia chá com pervitin para que todos apertassem minha mão elétrica
as nuvens coçavam os bigodes enquanto masturbavas sobre o cadáver ainda quente de tua filha menor
a lua tem violentas hemoptises no céu de nitrato
Deus suicidou-se com uma navalha espanhola


os braços caem
os olhos caem
os sexos caem


Jubileu da Morte

ó rosas ó arcanjos ó loucura apoderando-se do luto azul suspenso na minha voz

(in Roberto Piva, "Paranóia", 1963)

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